- Aonde vamos, papai?
Ele olhou em redor, desorientado.
- Dar um passeio...
Vamos passar pelo túnel – resolveu.
– A pé, você já passou pelo
túnel a pé?
- Não – disse a menina,
extasiada. Num passeio com o pai, tudo era motivo de prazer
– A gente pode?
- Pode. Tem um lugar do lado que é
para a gente passar.
- De que é feito o túnel, papai?
De que era feito o túnel? Essa era
uma pergunta meio tola. Tinha oito anos e parecia inteligente... O túnel era um
buraco na montanha, não era feito de nada.
- Ah...
De repente, porém, ela o surpreendeu:
- Túnel deprime muito a gente.
- Deprime? Com quem você aprendeu
isso?
- Com mamãe: nós duas andamos muito
deprimidas.
Positivamente, a mulher deveria ter
mais cuidado com o que falava. O que seria daquela menina, sem ele perto,
para... para.
- E por que vocês andam deprimidas?
- Não sei: acho que é porque não
temos vontade de comer:
Era preciso falar – e falar com
jeito, sem escandalizar a menina, assustá-la para a vida. Não dê motivo fútil –
era o que recomendavam. O que uma menina de oito anos entenderia por motivo
fútil?
- Aonde nós vamos, papai?
Saíram do túnel. O melhor era
procurar um lugar calmo, sossegado. Uma confeitaria, talvez.
- Você quer tomar um sorvete?
- Mamãe disse que está muito
frio.
- Não tem importância – disse
ele apressadamente:
- Vamos tomar um sorvete.
Satisfeitos ambos com a
resolução, entraram num ônibus e saltaram à porta da confeitaria. Ela se deteve
junto à vitrine:
- Olha, papai, que bonito.
Era uma horrorosa caixa de bombons em
forma de coração.
- Dou de presente, você quer? – e
puxou-a pelo braço, em direção á entrada.
Dar-lhe-ia tudo que quisesse, como a
comprar sua simpatia para o que tinha a dizer.
Mamãe falou que não posso comer
bombom senão não janto.
Hoje você pode, sim.
A mãe também estava exagerando,
oprimindo a menina. Não tinha nada de mais comer um bombom de vez em quando. E
aquele dia não era um dia comum – pensou, sem perceber que violentava as regras
intransigentes de educação da filha que ele próprio firmara e que a mulher
agora não fazia senão obedecer. Oprimindo a menina.
Pessoas entravam e saíam da
confeitaria, movimentada àquela hora da tarde. Moças e rapazes esperavam mesa,
conversando em grupos, alguns olharam aquele homem tímido, meio curvado, que
entrava com uma menina pela mão. Sentiu-se constrangido no ambiente elegante da
confeitaria, sentiu-se velho entre aqueles rapazes de suéter e aquelas moças de
calça comprida, como rapazes. Em dez anos a filha estaria assim. Dez anos
passam de pressa. Dez anos haviam passado.
- Aqui tem sorvete também. Não está
bom?
A menina sacudiu a cabeça, submissa:
- Lá na frente era melhor..
Lá na frente não tem lugar.
- Mas aqui não tem bombom.
- Ah, me esqueci de sua caixa de
bombons! Espere aí que vou buscar.
Sentou-se a uma das mesas e ordenou
ao garçom:
- Traga um sorvete para esta menina,
Que sorvete você quer, minha filha? De coco? Chocolate?
- Milk shake – disse ela, com
displicência, o garçom logo a entendeu. O pai olhou-a espantado:
- Que é que você pediu?
- Milk shake. Venho aqui sempre com a
mamãe e ela pede milk shake.
- Então espera aí direitinho que vou
buscar seus bombons, volto já.
Passou à outra parte da confeitaria,
dirigiu-se ao balcão:
- Quero aquela caixa de bombons que
está ali na vitrine, aquela feia, em forma de coração.
De longe, avistou a filha, perninhas
dependuradas, a chupar o canudo do refresco, olhos vagos, distraídos,
inconstantes – os olhos da mãe.
- Demorei? – e sentou-se ao lado
dela.
- Fiquei com medo de você ir embora.
- Então eu ia fazer uma coisa dessas,
minha filha, ir embora?
A menina apontou a mesa com os olhos,
sem abandonar a palha do refresco:
- Pedi um milk shake para você.
Ele se ajeitou na cadeira e acendeu
um cigarro. Chegara o momento – como começar?
- Você sentiu saudade do papai?
- Não, porque demorou pouco. Comprou?
- Comprei, olha aqui – e exibiu-lhe o
embrulho.
- Vou levar para mamãe – resolveu
ela, subitamente inspirada.
– Pode?
- Pode – e ele passou a mão pelo
rosto, desconcertado. – Um presente para ela.
- Meu, não! seu – fez a menina, como
a experimentá-lo.
Não respondeu.
Ela voltara a chupar o canudo de
palha, agora soprava para dentro do copo, fazendo espuma no refresco.
- Eu pergunto se você sentiu saudade
de mim não foi agora não, foi quando estive viajando.
- Você esteve viajando mesmo?
Meu Deus, como começar? Era preciso
começar, já se fazia tarde, o refresco se acabava, em pouco tinha de levá-la de
volta para a mãe. Estivera viajando sim, por que haveria de mentir?
- E chegou assim, sem mala, sem nada?
- É porque eu cheguei... Isto é...
Olha aqui. Toma este outro também, papai não está com vontade – e passou-lhe o
copo.
- Assim não janto e mamãe zanga –
disse ela, indecisa, a boca a meio caminho do segundo refresco.
- Não tem importância. Diga que fui
eu.
Não tinha importância – o importante
era dizer, contar tudo, escandalizar, violentar a inocência da menina. Assim
recomendavam todos hoje em dia: as crianças devem saber de tudo, porque senão
inventam por conta própria, e é pior. O que não é capaz de inventar uma
criança? Antigamente na escola, entre as amigas, a criança se sentia a única,
mas hoje em dia, podia se dizer que era a regra, tantos casais separados!
E sacudiam a cabeça, convictos:
sobretudo não de motivos fútil.
- Escuta, minha filha, você é uma
mocinha, já deve saber das coisas.
Voltava à formula da mocinha. Agora
era continuar, custasse o que custasse. Daria tudo para não viver jamais aquele
instante. Pensou se não era bom tomar antes um conhaque.
- Estive viajando sim, mas não é por
isso que não estou morando mais com você. Agora, por exemplo, já cheguei e não
vou dormir lá em casa.
- Onde é que você vai dormir?
- Noutro lugar – respondeu ele,
evasivo: não pensava em dizer onde estava morando, ela poderia querer ir com
ele.
- E quem é que vai dormir com a
mamãe?
A pergunta apanhou-o desprevenido,
sentiu-se jogado de súbito naquela atmosfera de ansiedade que precedera a
separação.
- Me diga uma coisa, filhinha – ele
não resistia, e se inclinara, ansioso, sobre a mesa, segurando a mão da filha:
- Você disse que vem sempre aqui com
sua mãe... Sozinha? Não vem ninguém mais com vocês?
A menina limitou-se a negar com a
cabeça, sempre tomando o refresco.
- E lá em casa? Tem ido alguém
visitar mamãe?
Desta vez ela sacudiu a cabeça
afirmativamente.
- Quem?
Desgarrou os lábios da palha já
amassada para responder:
- Vovó.
Ele chamou o garçom e pediu um
conhaque. Voltou a acomodar-se na cadeira, perturbado. Não interessava! Tudo
acabado para sempre. Agora restava contar para filha:
- Sabe, filhinha, você já é uma...
Bem, isso eu já disse. Quero dizer o seguinte: você sabe que papai gosta muito
de sua mãe...
Antes de mais nada, deixar bem a mãe:
era também o que aconselhavam.
Tomou de uma só vez o conhaque e
prosseguiu:
- Sua mãe é muito boa, sabe? Muito
boa mesmo, gosta muito de você. Você deve ser obediente e boazinha para ela.
Não, não era isso. Precisava dizer
logo, ou não diria nunca:
- Papai gosta dela e ela do papai.
Mas acontece, sabe?, que ela é muito diferente do papai, ela gosta de uma
coisa, papai de outra...
Motivo fútil. O que não seria motivo
fútil?
- Bem, eu e sua mãe gostamos muito um
do outro mas eu andava muito cansado, trabalhando o dia todo, sua mãe muito
nervosa, nós vivíamos discutindo... brigando...
- Se gostam, por que é que brigam?
Foi a única vez que a menina o
interrompeu. Dali por diante ficou calada, olhando para outro lado, e ele
prosseguiu como pôde, dizendo: ela não tinha amiguinha no colégio? Não gostavam
uma da outra? e de vez em quando não brigavam? Pois então? Com eles também era
assim. E para viver junto era preciso não brigar nunca, era preciso ser muito
bom um para o outro, era preciso...
- Minha filha, você não está me
escutando.
- Estou sim, papai...
A menina terminara o refresco e agora
riscava distraidamente a mesa com a palha umedecida.
- Que é que estou dizendo?
Ela voltou-se para ele:
- Está dizendo que você e mamãe vão
se separar.
Ele respirou fundo, num misto de
angústia e alívio:
- Mas vou visitar vocês sempre...
- Eu sei.
- Posso levar você para
passear.
-Sei.
-Posso... Posso...
Ela se levantou, puxando-o pela mão:
- Papai, me leva embora que já está
ficando tarde.
- Minha filha – disse ele, confuso e
comovido. E não resistiu, tomou-a no colo, abraçou-a com força, enquanto
lágrimas lhe enchiam os olhos. Quis falar e as palavras se prenderam num engasgo.
Um casal sentado ao fundo da confeitaria, mãos dadas sobre a mesa, voltou-se
curiosamente para vê-lo. Ele depositou a menina no chão, sem que ela oferecesse
resistência. Chamou o garçom, pagou, reteve a filha:
- Olha, você está esquecendo os
bombons.
Saíram, e a menina o conduzia
pela mão, como a um cego.
Fernando Sabino
Emociona!
Não sei se é a simplicidade do diálogo,
se é a "feia" caixa de bombons no formato de um coração
ou seriam as palavras que se prenderam num engasgo?
...
Julia Campanucci